sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

Desabafo do Inculto

Como podemos conviver
Se não aceitas que eu não goste
Do seu amado Godard?
Eu prefiro assistir Lost

Corro o risco de me olhares
E de dizer que pago mico
Porém deves saber que tenho
Todos os livros do Chico

E quantas vezes, cheio de si,
Discursas, profundo, com seu copo de uísque
Finjo que entendo pois nunca li
Nem sei soletrar Dostoiévsky

Pensas que não senti
Tu me olhando de viés
Quando por um momento cochilei
Enquanto ouvias Philip Glass?

Te derretes em elogios
Àquele barbudo excelso
Pois te digo que não entendo
Uma peça do tal Zé Celso

Que me chamem de ignorante
De matuto, de macaco
Mas a verdade é que eu acho
O Glauber Rocha um saco

Precisas me humilhar,
Me desprezar, me por no chão
Só porque eu tenho
O acústico da Legião?

Pois fica venerando
Teus poetas do Alentejo
Agradece que ao menos
Eu não ouço sertanejo

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

O Reino do Fruto Perfeito

Foi quando, após semanas de viagem, ao fazer a curva do rio, ele vislumbrou o Portal da Eterna Primavera, que tanto alimentava as histórias de seu povo. Sabia que, além daquele caminho conformado por parreiras de infindável e deslumbrante florada, estava o Reino do Fruto Perfeito.

Ao atracar sua jangada, foi alegremente recebido pelo povo local, que vestia seus trajes de festa: flores de maracujá-rei e ramos de ormilhão cobriam o corpo daqueles seres muito esbeltos e de pele amarelo-esverdeada.

- Seja bem vindo! Chegou bem na hora. - disse aquele que parecia ser o mestre de cerimônias.

Ao redor dele, os nativos dançavam e entoavam canções. Traziam consigo cestos plenos de romãs-de-corda, que se assemelhavam às semente do fruto que conhecemos, porém se apresentavam sem a casca espessa e amarelada da espécie que cultivamos - apenas as sementes cresciam, uma ao lado da outra, presas a uma fina haste, como um colar de rubis. Os nativos degustavam esse fruto segurando na base da haste com o indicador e o polegar e deslizando seus dedos até a outra extremidade, de modo a formar em sua mão uma porção de bagas ideal para um único bocado. Ofereceram ao viajante alguns exemplares; este aceitou com uma pequena reverência.

Foi conduzido, em seguida, pelo grande Portal. Nem mesmo em seu delírios de criança, quando ouvia as lendas contadas pelos antigos nos festejos de fins de maio, ele imaginara tamanha opulência. Enquanto suas narinas eram inundadas por perfumes frutados que mal conseguia distinguir, seus olhos passeavam por um sem-número de cores e texturas que adornavam toda a extensão do amplo corredor em arco que conduzia à praça central do reino. Frutos se dependuravam às pencas nas parreiras entrelaçadas, que filtravam a luz do sol e pareciam não ter conhecido os rigores do vento leste de inverno.

Em parte divertido com a confusão do forasteiro diante de espécies que ele não reconhecia, o mestre de cerimônias se aproximou, oferecendo-se como um guia turístico.

- São uvas? - perguntou o viajante, apontando para um vistoso cacho de frutos que estava mais à frente.

- Não - o guia sorria -, estas são nossas melancias.

O nativo apanhou duas quando passaram pelo cacho e ofereceu uma a seu novo amigo. “Mas veja, parece mesmo uma pequena melancia!”, pensou ele. De fato, a textura rajada de verde era inconfundível. Notou que seu guia havia puxado a pequena haste da ponta do fruto e a pele (que tinha a espessura da de um pêssego) saíra por completo. Repetiu o gesto e revelou-se uma polpa avermelhada e suculenta, sem sementes, que ele colocou na boca de uma só vez. O sabor era parecido com o das melancias que conhecia, no entanto era muito mais intenso e imensamente refrescante.

Nos dez minutos restantes de caminhada ao longo do corredor de entrada, o nativo se orgulhava de apresentar àquele deslumbrado homem um pouco mais da infinita variedade de espécies do reino: bananas-do-vento, cajus invertidos, figos-amarelos, mentrilos, pêras-mangas. O viajante ainda tentava assimilar as novas experiências sensoriais que essa breve caminhada lhe proporcionara quando chegaram à praça central. Nada mais era do que um extenso gramado de um verde profundo, em forma circular, com duas longas mesas em  madeira de manbaroba, cuidadosamente entalhadas em motivos florais. Essas mesas, curvas, ocupavam praticamente todo o perímetro da praça, deixando apenas duas passagens em extremos opostos, por uma das quais o viajante e sua animada escolta chegavam.

Por trás das mesas, limitando o grande gramado, estendia-se o grande pomar do reino. Suas mudas originais, dizia-se, tinham sido trazidas do Jardim de Tíon, logo antes da Grande Nevasca. À primeira vista, o porte das árvores foi um tanto decepcionante para o estrangeiro. Esperava encontrar espécimes de grande magnitude, mas tudo que viu foi uma formação quase arbustiva, que não ultrapassava os três metros de altura. Logo entenderia o porquê.

Até onde a vista podia alcançar, o pomar se estendia, cobrindo vales e alcançando o pé das montanhas. Quem passeasse por esses campos, notaria que cada espécime produzia mais de um tipo de fruto - eram arbustos mistos. Perceberia também a perfeição de sua formação: nenhum sinal de ataques de aves, insetos ou doenças maculava a pele de suas frutas. No entanto, caminhar entre as árvores não era permitido a todos. Apenas um grupo reduzido dos nativos se encarregava de cuidar do pomar. Na verdade, eles eram um tanto diferente dos demais: ainda mais esbeltos e mais altos, com longos braços e dedos finos e compridos, que se moviam com delicadeza e alcançavam a baga mais alta da árvore mais alta. Eles eram chamados pelos nativos simplesmente de colheiteiros. Foi então que o viajante entendeu a razão do pequeno porte das árvores - nenhum fruto era desperdiçado na colheita.

Os olhos do forasteiro percorriam a cena: sob o céu límpido daquela tarde de primavera - como não poderia ser diferente -, ajuntavam-se à mesa os nativos, às dezenas, saboreando suas delícias. Enquanto alguns deles se ocupavam no leva-e-traz de cestos e mais cestos multicoloridos, outros tantos mantinham a música viva com as harmonias dos clameúdes e o ritmo de seus pangelos.

- Estamos celebrando o retorno das abelhas-d’água! - explicou o guia. De fato, esta era uma das festas mais importantes de seu povo. As abelhas-d’água - assim chamadas por passarem grande parte do tempo flutuando sobre os rios, inclusive durante a procriação -  eram os únicos insetos daquele reino, responsáveis pela polinização de todo o pomar. Nessa época do ano, abandonavam suas colônias flutuantes e enchiam o grande pomar com seu zunido doce, semelhante ao som de mil flautins, com a missão de perpetuar a primazia daquele lugar.

Tamanha era a relevância daquela celebração que até mesmo o Imperador comparecia à praça para as festividades. E era isso que estava acontecendo nesse momento. Pela outra extremidade da praça, um longo caminho em aclive conduzia ao Palácio, de onde um séquito já se preparava para acompanhar o Imperador em sua descida. Pela primeira vez o viajante tinha olhado naquela direção - chamou-lhe a atenção o som das trombetilhas - e pode ver a majestade daquele palácio. Não era uma construção austera de ar militar, como ele havia visto em outras viagens. Lembrava mais uma grande estufa de plantas, com estruturas em ferro retorcido, encobertas de trepadeiras. Dentro do recinto do palácio, dizia-se, cresciam algumas das mais raras árvores do reino, protegidas o tempo todo pela guarda do imperador. Entre elas, um exemplar de tangerina-do-gomo-infinito, cujo fruto poderia ser degustado eternamente, contanto que fosse partilhado entre amigos verdadeiros. Havia também - sem dúvida, a mais valiosa de todas - uma Árvore do Fruto Favorito. Esse raríssimo espécime tinha galhos acinzentados e longas folhas escarlates. Seus pomos eram brancos, do tamanho aproximado de uma laranja, e eram muito difíceis de ser vistos com clareza. Estranhamente, por mais que se olhasse para um deles, era impossível determinar os seus limites, o seu contorno visual. Como se ele estivesse permanentemente fora de foco. Quando apanhado do pé, o fruto adquiria a forma e o sabor da fruta de preferência de quem o colhera.

O forasteiro tinha tomado seu lugar à mesa e estava perdido em pensamentos quando a corte do Imperador chegou ao local. Muitos vivas e ainda mais cestos coloridos encheram a praça, que agora parecia pequena para tamanha celebração. Sem muita pompa, e com palavras curtas, o Imperador saudou seu povo, apenas fazendo conhecimento do visitante com um breve aceno de cabeça em sua direção. Tomou seu assento junto aos demais e logo se ocupou da degustação dos frutos.

Ocupado com um punhado de avelãs-chocolate, o estrangeiro mal notou quando uma cesta um pouco menor que as outras foi colocada em sua mesa, logo ao seu lado. Algum tempo depois, no entanto, algo lhe chamou a atenção. Havia um fruto diferente sobre os demais. Olhou desconfiado por uns instantes, depois agarrou-o. Não tinha dúvidas: era uma goiaba. Não uma goiaba perfeita, mágica, angelical, como tudo que provara até então. Uma simples, trivial e um tanto disforme goiaba. Como muitas que havia visto em sua vida. “Deve haver algo especial nessa goiaba”, tentava se convencer, intrigado. Após breve hesitação, tacou-lhe os dentes. Nada de mais. O velho sabor que tanto conhecia de sua infância, subindo árvores do bosque de sua vila. Ainda tentava entender o que acontecera, quando olhou novamente para o fruto. Não podia ser! Mas era.

- Tem um bicho nessa goiaba. - disse em voz alta, como um tímido alerta.

Todos olharam em sua direção. A música, que não cessara desde sua chegada, calou-se. Os mais curiosos esticavam o pescoço para tentar enxergar, enquanto os mais covardes escondiam-se atrás dos cestos. Com um gesto, o Imperador ordenou que um dos soldados fosse examinar. O viajante tinha-se posto de pé, com o braço esticado à frente, segurando o pomo da discórdia. O soldado se aproximou lentamente, inclinando o corpo sobre a goiaba. Ao vislumbrar o pequeno verme, não pode dizer palavra: sentiu seu corpo e suas vestes se desintegrando no ar, até cair ao chão apenas um discreto monte de areia.

Instaurou-se o pânico na praça. Os nativos gritavam e corriam, esbarrando uns nos outros, procuram fugir dali. Em vão. Depois de poucos passos, encontraram o mesmo destino do bravo soldado. Um a um, foram cobrindo o gramado com a areia fina que antes fora seus corpos. O imperador não teve mais sorte. Não tentou correr. Aturdido, aguardou em seu lugar a sua hora, que não tardou a chegar.

Logo, as árvores do pomar foram acometidas do mal. Como um dominó, caíam em pó sobre a grama. Ao longe, via-se a extensão verde se transformando em areia. Em algum tempo, já atingia o palácio, que sucumbiu igualmente. Até mesmo a grama da praça e dos arredores sumira. O rio secara e seu antigo leito se via coberto pelo mesmo pó. Até onde podia-se enxergar, tudo era uma desolação ocre.

Foi então que nosso viajante se viu em pé, sozinho, no deserto, com uma goiaba bichada na mão.